José Saramago / A Obra / Conferências

Verdade e ilusão democrática

1991

Abro com duas citações de Aristóteles, ambas extraídas de Política. A primeira delas, curta, sintética, diz-nos que “em democracia, os pobres são soberanos, com exclusão dos ricos, porque são eles o maior número, e porque a vontade da maioria é lei”. A segunda, que, começando por anunciar uma restrição ao alcance da primeira, não só, afinal de contas, a alarga e completa, como a si própria praticamente se alcandora à altura de um axioma, esse princípio que, por evidente, não requer, para convencer, o esforço de uma demonstração. Eis o que nos diz a citação segunda: “A igualdade (no Estado) pede que os pobres não tenham mais poder que os ricos, que não sejam eles os únicos soberanos, mas que o sejam todos na proporção do número existente de uns e outros. Este parece ser o meio de garantir ao Estado, eficazmente, a igualdade e a liberdade”. Se não estou demasiado equivocado na interpretação desta passagem, o que Aristóteles nos está a dizer aqui é que os cidadãos ricos, embora participando, com toda a legitimidade democrática, no governo da polis, sempre estariam em minoria nele, pelo simples efeito de uma proporcionalidade imperativa e incontestável. Em algo Aristóteles acertava: que se saiba, ao longo de toda a História, jamais os ricos foram em maior número que os pobres. Mas esse acerto do filósofo de Estagira, pura obviedade aritmética, estilhaça-se contra a dura muralha dos factos: os ricos foram sempre aqueles que governaram o mundo ou que sempre tiveram quem por eles governasse. E hoje, provavelmente, mais do que nunca. Não resisto a recordar-vos, sofrendo com a minha própria ironia, que, para o discípulo de Platão, o Estado era a forma superior da moralidade…

Qualquer manual elementar de Direito Político nos informará que a democracia é “uma organização interna do Estado em que cabe ao povo a origem e o exercício do poder político, uma organização em que o povo governado governa por intermédio dos seus representantes”, ficando assim asseguradas, acrescentará o dito manual, “a intercomunicação e a simbiose entre governantes e governados, no quadro de um Estado de direito”. Em minha modesta opinião, aceitar acriticamente definições como esta, sem dúvida de uma pertinência e de um rigor formal que quase tocam a fronteira das ciências exactas, corresponderia, se nos transportássemos ao quadro pessoal da nossa quotidianidade biológica, a não dar atenção à gradação infinita de estados mórbidos, patológicos ou degenerativos de diversa gravidade que é possível, em cada momento, perceber no nosso próprio corpo. Expressando-me de outra maneira: o facto de a democracia poder ser definida de acordo com as fórmulas antes citadas, ou outras igualmente equivalentes em precisão e rigor, não significa que como real e efectiva democracia tenhamos de caracterizá-la em todos os casos e circunstâncias, só porque ainda é possível, quando o seja, reencontrar e identificar, no conjunto dos seus órgãos institucionais e das suas estruturas, algum ou alguns dos traços que nas referidas definições se explicitem ou que nela estejam implícitos.

Uma breve e primária incursão pela história das ideias políticas vai servir-me para trazer à colação duas questões simples que, sendo do conhecimento de toda a gente, são também, não obstante, e com o costumado argumento de que os tempos mudaram, postos de lado e desconsiderados sempre que se apresente a ocasião de reflectir, não já sobre meras definições de democracia, mas sobre a sua substância concreta. A primeira questão recordar-me-á que a democracia apareceu na Grécia clássica, mais exactamente em Atenas, por alturas do século V antes de Cristo; que essa democracia pressupunha a participação de todos os homens livres no governo da cidade; que se baseava na forma directa, sendo efectivos todos os cargos, ou atribuídos segundo um sistema misto de sorteio e eleição; que os cidadãos tinham direito a votar e a apresentar propostas nas assembleias populares.

Porém (e esta é a minha segunda questão), em Roma, continuadora e herdeira imediata das inovações civilizadoras dos Gregos, o sistema democrático, apesar das provas dadas no país de origem, não conseguiu ser estabelecido. Conhecemos as razões. A par de alguns outros factores adjuvantes, no entanto de menor importância social e política, o principal e definitivo obstáculo à implantação da democracia em Roma proveio do enorme poder económico de uma aristocracia fundiária que, muito justificadamente, via no sistema democrático um inimigo directo dos seus interesses. Embora tendo presente o risco de generalizações abusivas a que as extrapolações de tempo e de lugar sempre nos podem levar, é irresistível que me interrogue sobre se os impérios económicos e financeiros dos nossos dias, multinacionais e pluricontinentais, não estarão, eles também, fiéis à exclusiva e implacável lógica dos interesses, a trabalhar, fria e deliberadamente, para a eliminação progressiva de uma possibilidade democrática que, cada vez mais afastada temporalmente das suas indecisas expressões de origem, vai a caminho de um rápido estiolamento, por enquanto ainda mantida nas suas formas exteriores, mas profundamente desvirtuada na sua essência. Pergunto-me até que ponto poderão dar-nos garantias de uma acção realmente democrática as diversas instâncias do poder político quando, aproveitando-se da legitimidade institucional que lhes adveio da eleição popular, tentam desviar a nossa atenção da evidência palmar de que no mesmíssimo processo da votação já se encontravam presentes, e em conflito, por um lado, a expressão de uma opção política representada materialmente pelo voto e, por outro lado, a demonstração involuntária de uma abdicação cívica na maior parte dos casos sem consciência de si mesma? Por outras palavras: não será verdade que, no mesmo exacto instante em que o seu voto foi introduzido na urna, o eleitor transferiu para outras mãos, na prática e sem mais contrapartidas que as promessas que lhe haviam sido feitas durante a campanha eleitoral, a parcela de poder político que até esse momento lhe pertencera de legítimo direito como membro da comunidade de cidadãos?

Parecer-vos-á talvez imprudente da minha parte este papel de advogado do Diabo que aqui estou parecendo assumir, ao começar por denunciar o vazio instrumental que, nos nossos sistemas democráticos, separa aqueles que elegeram daqueles que foram eleitos, para logo a seguir, e sem ao menos recorrer à habilidade retórica de uma transição preparatória, passar a interrogar-me sobre a pertinência e a propriedade efectivas dos distintos processos políticos de delegação, representação e autoridade democrática.

Uma razão mais para que nos detenhamos um pouco a ponderar sobre o que a nossa democracia é e para que serve, antes de pretendermos, como se tornou moda do tempo, que ela se torne obrigatória e universal. Porque esta caricatura de democracia que, como missionários de uma nova religião, andamos a querer, pela persuasão ou pela força, difundir e instalar no resto do mundo, não é a democracia dos sábios e ingénuos Gregos, mas aquela outra que os pragmáticos Romanos teriam implantado nas suas terras se nela tivessem visto alguma utilidade prática, como ouso dizer que está a suceder à nossa volta neste começo de milénio, agora que a temos aí diminuída e rebaixada por mil e um condicionantes de toda a espécie (económicos, financeiros, tecnológicos, estruturais), os quais, não nos reste nenhuma dúvida, teriam levado os latifundistas do Lácio a mudar rapidamente de ideias, tornando-se nos mais activos e entusiásticos “democratas”… Chegados a esta altura do discurso, é mais do que provável que no espírito de muitos dos que até agora me têm escutado com benevolência principie a despontar a incómoda suspeita de que o orador, afinal de contas, não tem nada de democrata, o que, como não deixariam os mais informados e argutos de acrescentar, pertenceria ao domínio das verdades óbvias, conhecidas como geralmente são as minhas inclinações ideológicas e políticas… Que não é este o lugar nem este o momento de justificar ou defender, já que apenas me propus trazer aqui algo do que tenho pensado sobre a ideia, a suposição, a convicção, a esperança de que estejamos caminhando, todos juntos, em direcção a um mundo realmente democratizado, caso em que estaríamos convertendo em realidade, dois milénios e meio depois de Sócrates, Platão e Aristóteles, e num nível superior de consecução, a quimera grega de uma sociedade harmoniosa, agora já sem diferença entre senhores e escravos, segundo dizem as almas cândidas que ainda acreditam na perfeição… Uma vez que as democracias a que redutoramente temos chamado ocidentais não são censatárias nem racistas, uma vez que o voto do cidadão mais rico ou de pele mais clara pesa e conta tanto nas urnas como o do cidadão mais pobre ou de pele mais escura, que o mesmo é dizer, colocando as aparências no lugar das realidades, nós teríamos alcançado o grau óptimo de uma democracia de teor resolutamente igualitário, à qual só estaria a faltar uma mais ampla cobertura geográfica para se tornar no suspirado sucedâneo político das panaceias universais da antiguidade médica. Ora, se me é permitido lançar alguma água fria nestes superficiais e unânimes fervores, direi que a realidade brutal do mundo em que vivemos torna definitivamente irrisórios os traços idílicos do quadro que acabo de descrever, e que sempre, de uma maneira ou de outra, acabaremos por encontrar, por fim já sem surpresa, um corpo autoritário particular sob as roupagens democráticas gerais. Tentarei explicar-me melhor. Ao afirmar que o acto de votar, sendo obviamente expressão de uma vontade política determinada, é também, em simultâneo, um acto de renúncia ao exercício dessa mesma vontade, implicitamente manifestado na delegação operada pelo poder próprio do votante, ao afirmá-lo, repito, coloquei-me tão somente no primeiro limiar da questão, sem considerar então outros prolongamentos e outras consequências do acto eleitoral, quer do ponto vista institucional, quer do ponto de vista dos diversos estratos políticos e sociais em que decorre a vida da comunidade de cidadãos. Observando agora as coisas mais de perto, creio poder concluir que sendo o acto de votar, objectivamente, pelo menos em grande parte da população de um país, uma forma de renúncia temporal à acção política que deveria ser-lhe natural e permanente, mas que se vê adiada e posta em surdina até às eleições seguintes, altura em que os mecanismos delegatórios recomeçarão do princípio para da mesma maneira virem a terminar, ela, essa renúncia, poderá ser, não menos objectivamente, para a minoria dos eleitos, o primeiro passo de um processo que, estando democraticamente justificado pelos votos, não raras vezes prossegue, contra as baldadas esperanças dos iludidos votantes, objectivos que de democráticos nada têm e que poderão até, na sua concretização, chegar a ofender frontalmente a lei. Em princípio, a nenhuma comunidade mentalmente sã lhe passaria pela cabeça a ideia de eleger traficantes de armas e de drogas ou, em geral, indivíduos corruptos e corruptores para seus representantes nos parlamentos ou nos governos, porém, a amarga experiência de todos os dias mostra-nos que o exercício de amplas áreas do poder, tanto em âmbitos nacionais como internacionais, se encontra nas mãos desses e de outros criminosos, ou dos seus mandatários políticos directos e indirectos. Nenhum escrutínio, nenhum exame microscópico dos votos lançados numa urna seria capaz de tornar visíveis, por exemplo, os sinais denunciadores das relações de concubinato entre a maioria dos Estados e grupos económicos e financeiros internacionais cujas acções delituosas, incluindo aqui as bélicas, estão a levar à catástrofe o planeta em que vivemos.

Aprendemos dos livros, e as lições da vida o confirmam, que, por mais equilibradas que se apresentem as suas estruturas institucionais e respectivo funcionamento, de pouco nos servirá uma democracia política que não tenha sido constituída como raiz e razão de uma efectiva e concreta democracia económica e de uma não menos concreta e efectiva democracia cultural. Dizê-lo nos dias de hoje há-de parecer, mais que uma banalidade, um exausto lugar-comum herdado de certas inquietações ideológicas do passado, mas seria o mesmo que fechar os olhos à realidade das ideias não reconhecer que aquela trindade democrática — a política, a económica, a cultural —, cada uma delas complementar das outras, representou, no tempo da sua prosperidade como projecto de futuro, uma das mais congregadoras bandeiras cívicas que alguma vez, na história recente, foram capazes de comover corações, abalar consciências e mobilizar vontades. Hoje, pelo contrário, desprezadas e atiradas para a lixeira das fórmulas que o uso, como a um sapato velho, cansou e deformou, a ideia de uma democracia económica, por muito relativizada que tivesse de ser, deu lugar a um mercado obscenamente triunfante, e a ideia de uma democracia cultural foi substituída por uma não menos obscena massificação industrial das culturas, esse falso melting-pot com que se pretende disfarçar o predomínio absoluto de uma delas. Cremos haver avançado, mas, de facto, retrocedemos. E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se persistirmos no equívoco de identificá-la com as suas expressões quantitativas e mecânicas, essas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem proceder antes a um exame sério e conclusivo do modo como eles utilizam o voto que os colocou no lugar que ocupam.

Uma democracia que não se auto-observe, que não se auto-examine, que não se autocritique, estará fatalmente condenada a anquilosar-se. Não se conclua do que acabo de dizer que estou contra a existência dos partidos: sou militante de um deles. Não se pense que aborreço os parlamentos: querê-los-ia, isso sim, mais laboriosos e menos faladores. E tão-pouco se imagine que sou o inventor de uma receita mágica que, doravante, permitirá aos povos viverem felizes sem governos: apenas me recuso a admitir que só seja possível governar e desejar ser governado de acordo com os modelos democráticos em uso, a meu ver incompletos e incoerentes, esses modelos que, numa espécie de assustada fuga para a frente, pretendemos tornar universais, como se, no fundo, só quiséssemos fugir dos nossos próprios fantasmas, em vez de os reconhecer como o que são e trabalhar para vencê-los. Chamei “incompletos” e “incoerentes” aos modelos democráticos em uso porque realmente não vejo como se possa designá-los de outra maneira.

Uma democracia bem entendida, inteira, redonda, irradiante, como um sol que por igual a todos ilumine deverá, em nome da pura lógica, começar por aquilo que temos mais à mão, isto é, o país onde nascemos, a sociedade em que vivemos, a rua onde moramos. Se esta condição primária não for observada, e a experiência de todos os os dias diz-nos que não o é, todos os raciocínios e práticas anteriores, quer dizer, a fundamentação teórica e o funcionamento experimental do sistema, estarão, desde o início, viciados e corrompidos. De nada adiantará limpar as águas do rio à sua passagem pela cidade se o foco contaminador estiver na nascente. Vimos já como se tornou obsoleto, fora de moda, e até mesmo ridículo, invocar os objectivos humanistas de uma democracia económica e de uma democracia cultural, sem os quais o que designamos por democracia política ficou limitado à fragilidade de uma casca, acaso brilhante e colorida de bandeiras, cartazes e palavras de ordem, mas vazia de conteúdo civicamente nutritivo. Querem, porém, as circunstâncias da vida actual que até mesmo essa delgada e quebradiça casca das aparências democráticas, ainda preservadas pelo impenitente conservadorismo do espírito humano, ao qual costumam bastar as formas exteriores, os símbolos e os rituais para continuar a acreditar na existência de uma materialidade já carecida de coesão ou de uma transcendência que deixou perdidos pelo caminho o sentido e o nome — querem as circunstâncias da vida actual, repito, que as cintilações e as cores que até agora têm adornado, diante dos nossos resignados olhos, as desgastadas formas da democracia política, se estejam a tornar rapidamente baças, sombrias, inquietantes, quando não impiedosamente grotescas como a caricatura de uma decadência que se vai arrastando entre chufas de desprezo e uns últimos aplausos irónicos ou de interessada conveniência.

Como sempre aconteceu desde o começo do mundo e sempre continuará a acontecer até ao dia em que a espécie humana se extinga, a questão central de qualquer tipo de organização social humana, da qual todas as outras decorrem e para a qual, mais cedo ou mais tarde, todas acabam por concorrer, é a questão do poder, e o principal problema teórico e prático com que nos enfrentamos consistirá na necessidade de identificar quem o detém, de averiguar como chegou a ele, de verificar o uso que dele faz, os meios de que se serve e os fins a que aponta. Se a democracia fosse, de facto, o que com autêntica ou simulada ingenuidade continuamos a dizer que é, o governo do povo, pelo povo e para o povo, qualquer debate sobre a questão do poder deixaria de ter sentido, uma vez que, residindo o poder no povo, seria ao povo que competiria a sua administração, e, sendo o povo a administrar o poder, está claro que só o poderia fazer para o seu próprio bem e para a sua própria felicidade, pois a isso o estaria obrigando aquilo a que chamo, sem qualquer aspiração a um mínimo de rigor conceptual, a lei da conservação da vida. Ora, só um espírito perverso, panglossiano até ao cinismo, teria a ousadia de afirmar que o mundo em que vivemos é satisfatoriamente feliz, este mundo que, pelo contrário, ninguém deveria pretender que o aceitemos tal qual é, só pelo facto de ser, repetindo o conhecido nariz-de-cera, o melhor dos mundos possíveis. Também insistentemente se afirma que a democracia é o menos mau sistema político de todos quantos até hoje se inventaram, e não se repara que talvez esta conformidade resignada com uma coisa que se contenta com ser “a menos má” seja o que nos anda a travar o passo que porventura seria capaz de conduzir-nos a algo “melhor”.

Por sua própria natureza e definição, o poder democrático será sempre provisório e conjuntural, dependerá da instabilidade do voto, da flutuação das ideologias e dos interesses das classes, e, como tal, pode até ser visto como uma espécie de barómetro orgânico que vai registando as variações da vontade política da sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior, abundam os casos de alterações políticas aparentemente radicais que tiveram como efeito radicais alterações de governo, mas a que não se seguiram as alterações sociais, económicas e culturais igualmente radicais que o resultado do sufrágio havia prometido.

Efectivamente, dizer hoje “governo socialista”, ou “social-democrata”, ou “democrata-cristão”, ou “conservador”, ou “liberal”, e chamar-lhe “poder”, é como uma operação de cosmética, é pretender nomear algo que não se encontra onde se nos quer fazer crer, mas sim em outro e inalcançável lugar — o do poder económico —, esse cujos contornos podemos perceber em filigrana

por trás das tramas e das malhas institucionais, mas que invariavelmente se nos escapa quando tentamos chegar-lhe mais perto e que inevitavelmente contra-atacará se alguma vez tivermos a louca veleidade de reduzir ou disciplinar o seu domínio, subordinando-o às pautas reguladoras do interesse geral. Por outras e mais claras palavras, afirmo que os povos não elegeram os seus governos para que eles os “levassem” ao mercado, e que é o mercado que condiciona por todos os modos os governos para que lhe “levem” os povos.

E, se assim falo do Mercado (agora com maiúscula), é por ser ele, nos tempos modernos, o instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder realmente digno desse nome que existe no mundo, o poder económico e financeiro transnacional e pluricontinental, esse que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo.

Não faltarão sensibilidades delicadas para considerarem escandaloso e gratuitamente provocador o que acabo de dizer, mesmo que tenham de reconhecer que não fiz mais que enunciar algumas verdades transparentes e elementares, uns quantos dados correntes da experiência de todos nós, simples observações do senso comum. Sobre essas e outras não menos claras obviedades, porém, têm imposto as estratégias políticas de todos os rostos e cores um prudente silêncio a fim de que não ouse alguém insinuar que, conhecendo a verdade, andamos a cultivar a mentira ou dela aceitamos ser cúmplices.

Enfrentemos, portanto, os factos. O sistema de organização social que até aqui temos designado como democrático tornou-se cada vez mais numa plutocracia (governo dos ricos) e cada vez menos uma democracia (governo do povo). É impossível negar que a massa oceânica dos pobres deste mundo, sendo geralmente chamada a eleger, não é nunca chamada a governar (os pobres nunca votariam num partido de pobres porque um partido de pobres não teria nada para prometer-lhes). É impossível negar que, na mais do que problemática hipótese de que os pobres formassem governo e governassem politicamente em maioria, como a Aristóteles não repugnou admitir na Política, ainda assim não disporiam dos meios para alterar a organização do universo plutocrático que os cobre, vigia e não raramente afoga. É impossível não nos apercebermos de que a chamada democracia ocidental entrou em um processo de transformação retrógrada que é totalmente incapaz de parar e inverter, e cujo resultado tudo faz prever que seja a sua própria negação. Não é preciso que alguém assuma a tremenda responsabilidade de liquidar a democracia, ela já se vai suicidando todos os dias. Que fazer, então? Reformá-la?

Demasiado sabemos que reformar algo, como escreveu o autor de “Il Gattopardo”, não é mais que mudar o suficiente para que tudo se mantenha igual.

Regenerá-la? A qual visão suficientemente democrática do passado valeria a pena regressar para, a partir dela, reconstruir com novos materiais o que hoje está em vias de se perder? À da Grécia antiga? À das cidades e repúblicas mercantis da Idade Média? À do liberalismo inglês do século XVII? À do enciclopedismo francês do século XVIII? As respostas seriam com certeza tão fúteis quanto já o foram as perguntas… Que fazer, então? Deixar de considerar a democracia como um dado adquirido, definido de uma vez e para sempre intocável. Num mundo que se habituou a discutir tudo, uma só coisa não se discute, precisamente a democracia. Melífluo e monacal, como era seu estilo retórico, Salazar, o ditador que governou o meu país durante mais de quarenta anos, pontificava: “Não discutimos Deus, não discutimos a Pátria, não discutimos a Família”. Hoje discutimos Deus, discutimos a pátria, e só não discutimos a família porque ela própria se está a discutir a si mesma. Mas não discutimos a democracia. Pois eu digo: discutamo-la, meus senhores, discutamo-la a todas as horas, discutamo-la em todos os foros, porque, se não o fizermos a tempo, se não descobrirmos a maneira de a reinventar, sim, de a re-inventar, não será só a democracia que se perderá, também se perderá a esperança de ver um dia respeitados neste infeliz planeta os direitos humanos.