Cadernos do Centenário

Ana Luísa Amaral: A força que vem de dentro

Num belíssimo poema do livro Coisas de Partir (1993), Ana Luísa Amaral deixou-nos estes versos: “Nem tágides nem musas: / só uma força que me vem de dentro, / de ponto de loucura, de poço / que me assusta / seduzindo.”  E quase logo depois, na terceira e última estrofe do poema: “Nem rio nem lira /nem feminino grupo a transbordar: / só o que herdei em força não herdada, / em fonte onde o luar / não está”.

A capacidade (que só a poesia possui) de concentrar em curtos versos e num breve texto um universo inteiro, denso e coerente, só essa capacidade permite ler, naquele poema, muito daquilo que a poesia de Ana Luísa Amaral nos legou: a complexa, às vezes surdamente conflituosa, relação com a tradição; a energia vital que a poesia sublima; a tensão dilemática entre o medo e a atração pela fundura do que parece insondável; a independência de uma afirmação pessoal em clave poética. Tudo isso e também o vigor inesgotável para, pela via da poesia, afrontar desafios e defender causas, numa linguagem em que a densidade da escrita poética não teme a incorporação do que é trivial e do quotidiano banal, às vezes em tom irónico: “Uma imensa paciência aqui me trouxe, / um alvoroço de apostar o que não tenho: / como contar feijões ou jogar a / feijões // De solidão também / as músicas que faço quando caio, / o estar aqui tão íntima / como os feijões pequenos, em trança  / os seus barulhos”.

Quando por mim foi desafiada a colaborar no projeto “Mulheres Saramaguianas”, Ana Luísa Amaral aceitou o repto, com a prontidão e com a generosidade que a distinguiam, e escolheu Joana Carda para sobre ela escrever. No poema que compôs, em diálogo com a imagem da personagem, tal como Graça Morais a configurou, a poeta assume uma voz feminina que, antes de tudo, a si mesma se procura: “Que rosto tenho?”, pergunta, em diálogo com a pintora: “Toda riscada a pele, como rasgada foi / a terra que fendi // Não máscara de sal, / talvez palavra riscada numa pedra – / a cabeça ordenando, / o coração pulsante, / a voz em hino ou melopeia ardente, / vara como caneta (…)”.

O gesto ousado de Joana Carda – traçar um risco que rasga a terra e liberta a jangada rumo ao desconhecido –, esse gesto adequa-se bem à personalidade poética de Ana Luísa Amaral. Noutros termos: nenhuma outra personagem de Saramago poderia convir à poeta como Joana Carda. Digo “convir” e sublinho os sentidos do vocábulo, a começar pelo etimológico: vir juntamente, mas também vir a propósito, coincidir.

Aquilo que de Ana Luísa Amaral revemos em Joana Carda e aquilo que desta se projeta na escritora são duas faces de uma moeda (ou a imagem que o espelho devolve em duplo) que, solidariamente, ambas cunharam. Uma, como agente de um futuro para a Ibéria; a outra, como voz poética que revela o segredo potenciador da descoberta. Chamamos coragem (ou “uma força que me vem de dentro”) a esse segredo, e ambas, personagem e poeta, com ele se identificam. É  essa coragem que reconhecemos como atributo da navegante, n’A Jangada de Pedra, e impulso para o trabalho da poeta que se revela aos outros. Final do poema: “Vós, se olhardes / de frente, e conseguirdes resistir ao medo, / vereis romper-se a névoa, então // E então vereis – também”.

O retrato de Joana Carda, por Graça Morais, e a sua reinvenção, no poema de Ana Luísa Amaral, transcrito integralmente:

JOANA C. : QUE ROSTO?
Que rosto tenho?
Toda riscada a pele, como rasgada foi
a terra que fendi
Não máscara de sal,
talvez palavra riscada numa pedra –
a cabeça ordenando,
o coração pulsante,
a voz em hino ou melopeia ardente,
vara como caneta
– e o milagre,
oposto do acaso,
mas para vós:
mistério ou grossa névoa
Eu – que incógnito
poder ou alumiação?
feitiço de mais coisas enredadas, flores, limos,
algas, negras raízes boiando
à superfície das águas que rompi
Eu – fui eu quem o rasgou,
ao mar. Mais que Moisés,
pois que a minha cisão,
mesmo sabendo que o sempre não pode durar sempre,
ficou eterna. E a terra obedeceu
e rasgou-se também,
transformou-se em navio,
não: em velada balsa
Que rosto tenho aqui?
Todo o branco do mar e o seu cinzento
todo o azul do céu escrito em avesso:
a luz:
anunciando longa tempestade
como a coroa pintada,
feixe de arbusto mágico, sarça estranhíssima
sobre a cabeça dele,
o cão que me acompanha
O dos infernos. Não me olha, ele,
mas pressente o mais leve dos rumores
ou tremores. E é nessa sua
cercania de tudo, o mais constante ser
Ostentará a coroa do saber?
Saberá ele o que me espera
e eu só pressinto?
Quebrados são os selos,
resgatadas as letras e gravadas,
não pedra de roseta, mas ponto de universo
de onde, visível: tudo:
o pedaço de terra flutuando,
o mar cindido, ainda e para sempre
chorando o desterrado,
e a liberdade ao longe,
nos seus olhos. Vós, se olhardes
de frente, e conseguirdes resistir ao medo,
vereis romper-se a névoa, então
E então vereis – também


Carlos Reis, 8 de agosto